“Sou uma deputada federal, não importa o quanto eu peso”, diz Sâmia Bomfim

(Foto: Julia Rodrigues/UOL)

Sâmia Bomfim (PSOL-SP) já foi retirada à força da Câmara Municipal de São Paulo por dois seguranças que a puxavam, um de cada lado, enquanto ela se debatia e, aos gritos, exigia o direito de permanecer na casa legislativa. Na época, Sâmia ainda não fazia parte do mundo da política: era militante feminista e foi expulsa por bater boca com vereadores que comemoravam a retirada da discussão de gênero do Plano Nacional de Educação. Isso foi em junho de 2016. Em outubro, elegeu-se vereadora com 12.464 votos.

Corta para dois anos depois. Sâmia recebe 249.887 votos e é eleita deputada federal por São Paulo. É a oitava mais votada no estado e a primeira entre todos os candidatos de esquerda.

Com nove meses de mandato em Brasília, ela hoje é, também, a pré-candidata do PSOL à prefeitura de São Paulo, maior cidade do Brasil. Agora, diz, a postura é outra. “Não sou mais briguenta daquele jeito.” Virou a Sâmia-paz-e-amor? “Não. Sigo dura no que falo e no tom de voz. Ainda grito, sou contundente, mas percebi que não preciso mais ser assim no cotidiano.”

Ironia do destino: se as pré-candidaturas já ventiladas se confirmarem (os partidos devem decidir seus candidatos até 15 de agosto de 2020), Sâmia vai enfrentar outra mulher que ganhou fama de briguenta no Congresso, na disputa pela cadeira de prefeita: a também deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP). “Ela é bélica, tem uma postura antidemocrática. Os debates entre nós duas serão quentes”, prevê Sâmia.

Nesta entrevista para Universa, ela fala sobre os vários ataques à sua aparência –como as piadas com o seu peso e o fato de receber fotos de hambúrgueres em suas redes sociais–, critica as deputadas do PSL que “usam o antifeminismo como marketing” e acha que a colega Tabata Amaral (PDT-SP) “caiu no canto da sereia”.

Acredita que está preparada para ser prefeita de São Paulo? Vou ter que passar por um processo de preparação. Entendo da cidade porque fui vereadora, mas a função do executivo é muito mais detalhada. Me comprometo a estudar muito caso seja candidata. A discussão sobre meu nome vem desde que fui eleita deputada federal com 250 mil votos, foi inevitável. Meu perfil precisa ser valorizado: sou jovem, tenho uma ideologia firme, não tenho medo de polêmica. Mas diria que não tenho chance de ganhar, as máquinas eleitorais dos outros partidos são brutais. Ainda assim, pode ser útil para criar uma onda progressista, uma opção para a nova esquerda e até para que outras mulheres se vejam como candidatas.

Quais as principais diferenças entre você e a outra possível candidata, a deputada Joice Hasselmann? Ela não tem perfil de abaixar a cabeça, né? É bélica, extrapola a intolerância, tem uma postura antidemocrática. Eu procuro ser calma, educada, mas também não fujo de discussão, gosto de polêmica. Acho que serão quentes os debates. Para mim, que não acompanhava o lado de lá, a Joice surgiu do nada. E hoje é a pessoa mais forte do PSL no Congresso. Percebo que ela cumpre um papel no partido, na direita, de fortalecimento da figura feminina. Mas é pela via autoritária, está ligada ao mercado financeiro, ao discurso pró-armamento. A minha é diferente, é a do feminismo, da conquista de direitos.

Seu histórico de brigas, na época em que era vereadora, não fica muito atrás do da Joice. Porém, como deputada, amenizou o tom. Por quê? Eu era mais briguenta quando era vereadora, mas hoje tento evitar essa postura. Quem tem que estar isolado é o PSL, não nós do PSOL. E, se para isso tiver que ponderar no enfrentamento, na briga política, vale a pena. Tem funcionado. E também porque a Câmara dos Deputados não é a Câmara de Vereadores. É mais difícil ser ouvida em Brasília. E, dependendo do comportamento que você tem, muitas portas se fecham. Sigo muito dura no que falo e no tom de voz, ainda grito, mas nas horas certas. Não preciso ser assim no cotidiano, ficar provocando, arranjando briga o tempo inteiro. Hoje, sento para conversar com quase todo mundo. Só teria muita dificuldade com qualquer um da família Bolsonaro. Aqueles filhos dele são muito intragáveis.

(Foto: Julia Rodrigues/UOL)

Um dos comentários que mais fazem nas suas redes sociais é sobre seu peso. Parlamentares como Kim Kataguiri (DEM-SP) e Alexandre Frota (PSDB-SP) também já tentaram desqualificá-la por causa da aparência. Como lida com isso? Nas redes sociais é todo dia. Se não são comentários, são fotos de hambúrguer: recebo várias por dia, é surreal. Ou então montagem minha comendo em fast-food. E eu nem gosto de fast-food. Tem uns que até acham que estão elogiando. Dizem: “Ela é gordinha, mas eu comeria”. Me incomoda porque tem muita gente que está me ofendendo e porque o padrão físico da mulher é sempre um tema. Eu sou uma deputada federal, não importa o quanto eu peso. Minha forma física não é é uma questão para o papel que estou exercendo na sociedade e nem atrapalha meu desempenho parlamentar. Sobre o Kim, ele é jovem, infantil, fala de videogame, lembra meus alunos quando eu dava aula de inglês. O Alexandre Frota veio me pedir desculpa pessoalmente por um tweet [Frota chamou Sâmia de “hamburgão da Câmara”]. Disse que foi lamentável e que nunca mais aconteceria. Fiquei chocada. E nunca mais aconteceu. Ele hoje é outra pessoa, percebi que ele não queria virar uma caricatura como os colegas do PSL. Queria ser um “player” e criar a própria personalidade política [Frota saiu do PSL e se filiou ao PSDB em 16 de agosto].

Renata Abreu (Podemos-SP) para retirar a obrigatoriedade de reservar 30% de candidaturas para mulheres nos partidos. Surpreende essa proposta vir de uma mulher e seja apoiada por metade das mulheres da Câmara? Acredito que essa metade que apoia a Renata está sendo pressionada diretamente pelos presidentes e dirigentes partidários que querem se livrar desse problema de colocar mulher na chapa. Se elas são representantes diretas desses homens, vão tentar garantir a política deles. Ela mesma, como presidente do Podemos, também quer. Isso dificulta muito a nossa vida. Segundo esse projeto, não seria mais obrigatório ter 30% de candidatas mulheres, só uma já seria suficiente, mas aí só essa uma ficaria com 30% do fundo eleitoral. É um escândalo. Quem não tem dinheiro, pai ou marido na política, não consegue se candidatar sem a política de cotas. Infelizmente, aqui funciona a “lei da maridocracia”: as parlamentares ainda estão amparadas pela figura do homem.

A maioria dos seus projetos de lei tem relação com o combate à violência contra a mulher. Mas isso também é pauta das deputadas da direita, antifeministas. O que difere um grupo do outro? Acho que os dois se aproximam na constatação do problema. Tem um nível de sinceridade quando dizem que se preocupam com isso. Mas divergimos no remédio. As deputadas do PSL sempre vão pela via do punitivismo, da prisão perpétua, da morte do agressor. A gente defende outras medidas, como criar políticas públicas e garantir os registros de ocorrências. A ministra Damares Alves fala muito sobre o tema, mas é só marketing. Ela é uma nulidade, um dos vários problemas dela é a ausência de propostas. Não fez nada, não estruturou nada novo, só reduz orçamento. A figura dela só contribui para o reforço da violência contra meninas ao tirar o debate dos ambientes escolares. Mas acho que, sobre o tema de abusos contra menores, até o feminismo precisa falar mais. Talvez por causa da Lei Maria da Penha, focamos muito em violência doméstica, em se proteger de abusador. Mas é assustador pensar na quantidade de meninas que são estupradas.

Quem foi a grande decepção e quem foi a grande surpresa para você na Câmara dos Deputados? Não esperava que a Tabata Amaral fosse votar a favor da reforma da previdência porque, ainda que ela tenha um programa liberal, e nunca escondeu isso, tem uma agenda de redução das desigualdades. E a reforma da previdência aprofunda desigualdades. Nisso, ela foi uma decepção por ter caído no canto da sereia. Acho que tem a ver com o grupo que financiou a campanha dela, o RenovaBR. Todos os deputados do Renova votaram a favor, são ligados diretamente com setores do alto empresariado. A surpresa positiva foi a Professora Dorinha [DEM-TO, líder da bancada feminina na Câmara]. É uma figura de muito diálogo. Temos muitas diferenças ideológicas, mesmo nessa questão da previdência, que ela votou a favor. Mas ela também brigou para amenizar o prejuízo para as mulheres, como diminuir os anos de contribuição de 20 para 15. Nisso, as parlamentares do PSL estão isoladas: elas deixam claro que os direitos das mulheres são frescura, que não deveriam nem existir. É o marketing delas dizer que são antifeministas.

(Foto: Julia Rodrigues/UOL)

Mulheres são apenas 15% na Câmara. Como a falta de representação feminina aparece no cotidiano e na estrutura física da casa? Quando vou do gabinete para o plenário tem um corredor interessante, com várias fotos das deputadas da história. Não enche uma parede desse tamanho [aponta para uma parede de cerca de 2m²]. Muitas ainda estão lá, como a Luiza Erundina [PSOL-SP]. Só nessa gestão tem mais homens do que já houve mulheres em toda a história da Câmara. Não ser levada a sério por ser jovem e mulher acontece o tempo todo. Tinha um projeto no plenário sobre aviação. Eu procurei um deputado do centrão para debater, e ele não deu a menor bola. Disse “tá bom, tá bom”, e começou a conve Disse “tá bom, tá bom”, e começou a conversar com outro cara. Aí chamei o Ivan Valente [deputado do PSOL-SP] para fazer a mesma abordagem, e eles ficaram meia hora conversando.

Seu salário aumentou R$ 15 mil como deputada federal em comparação ao que ganhava como vereadora, foi de R$ 19 mil para R$ 34 mil. O que faz com esse dinheiro? Cerca de 40% vai para o PSOL. Eu mudei de apartamento, agora estou em um com porteiro, com aluguel mais caro, para me sentir mais segura. Moro com meu “namorido”. Também ando com um segurança, que é motorista. Antes, não tinha. E tenho meu escritório em São Paulo, uma casa que usamos para eventos e reuniões e pago com meu salário. Ah, e agora me visto melhor [a deputada ri]. Comecei a usar mais roupas coloridas lá em Brasília. Todo mundo se veste de preto, marrom, cinza, queria ficar diferente. E comecei a me arrumar mais. Não dá para chegar de calça jeans e All Star para falar com um ministro do STF.

Alguma coisa já fez com que gargalhasse no plenário? Um dia, eu estava sentada, de vestido, que subiu e eu não percebi. Uma colega do PSOL do meu lado me avisou: “Sâmia, pelo amor de Deus, olha a sua bunda”. Eu estava pelada no meio do plenário. Também aconteceu de rir de uns caras do PSL. Estava na Comissão de Ciência e Tecnologia e fiz uma proposta. Os deputados do PSL fizeram um escarcéu, queriam tirar da pauta. Aí, na hora de votar, o presidente da comissão disse: “Favoráveis permaneçam como estão”. Se ninguém falar nada, a proposta é aprovada. Eles acharam que ia ter alguma outra votação depois e, por inabilidade e inexperiência, ficaram quietos. A proposta passou. Pediram para retomar a votação, mas não tinha como. Nesse dia, eu chorei de rir.

Fonte: Camila Brandalise – Universa

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