Saúde mental sobrecarregada é ameaça para mulheres em tempos de coronavírus

Além da preocupação com a Covid-19, acúmulo de tarefas vira um transtorno durante a pandemia

A desigualdade na distribuição das tarefas domésticas entre homens e mulheres é uma realidade histórica no mundo. E, em um contexto de pandemia, a situação delas, que carregam ainda a cobrança pelo cuidado com o outro, é ainda mais agravada. Tais situações criam a preocupação com a saúde mental das mulheres, submetidas diariamente a responsabilidades extras.

Segundo o levantamento Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), enquanto homens dedicam, em média, 10,5 horas semanais às tarefas domésticas, as mulheres destinam 23,3 horas de suas semanas com afazeres em casa. “E, neste contexto específico, da pandemia, como já se tem como pressuposto que é das mulheres o trabalho doméstico, os cuidados, o trabalho da casa, de cuidar das crianças, vêm concentrados numa situação de agravamento”, explica a professora Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher (Nepem) da UFMG.

Nesse sentido, a médica psiquiatra Christiane Ribeiro, membro da Comissão de Estudos e Pesquisa da Saúde Mental da Mulher da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), destaca que o quadro da pandemia é preocupante para a saúde mental das mulheres. “Elas já têm um risco aumentado para quadros depressivos e transtornos de ansiedade ao longo da vida reprodutiva, e esses riscos podem ser maiores se forem somados fatores estressores à realidade dessa mulher. E, neste período de isolamento, temos vários deles, como o aumento da sobrecarga em relação às atividades domésticas, home office, cuidado com os filhos sem uma rede de apoio, além do aumento dos índices de violência doméstica”, detalha.

Para a servidora pública Nathalia Moraes, de 39 anos, a quarentena trouxe mudanças significativas na rotina. Além de continuar trabalhando em casa, Nathalia cuida dos filhos de 8 e 6 anos. “É humanamente impossível fazer tudo, isso vai dando um estresse, uma angústia, uma fadiga, porque nada sai bem feito, e não tem como ser diferente, porque estamos fazendo muitas coisas ao mesmo tempo”, desabafa. Nathalia se esforça para encontrar um tempo para si em meio a tanta loucura. “Nem que seja tomar uma taça de vinho à noite ou fazer meia hora de dança pela internet ou me exercitar junto com os meninos, porque senão fica insuportável, a gente surta mesmo”, conta.

A pandemia também mudou tudo para a chef de cozinha Débora Caram, 41. Além da rotina do trabalho, que passou da noite para a manhã, o cuidado com os filhos gêmeos de 10 anos e a caçula de 4 anos também passou a ser mais intenso. Débora, que antes trabalhava em eventos à noite, agora vende marmitas no almoço. A saída para ela foi deixar o perfeccionismo de lado: “Não dá pra querer manter tudo limpo, tudo maravilhoso, porque antes as crianças não ficavam tanto em casa, eu não ficava, e, depois de perceber, eu aprendi que não preciso ficar tão estressada com isso”.
Tanto Nathalia quanto Debora veem no gênero um fator preponderante para a sobrecarga que sentem durante a pandemia. “Fica muito claro que o cuidar ainda é um ato muito feminino, e, agora, esta quarentena está servindo para os homens perceberem as infinitas atividades que existem dentro de uma casa”, relata Nathalia.

Linha de frente

Ambas as especialistas chamam a atenção para o fato de que a maioria dos trabalhadores da saúde na linha de frente no combate ao coronavírus é composta por mulheres. Um estudo citado pela psiquiatra, feito em Wuhan, na China, apontou maior incidência de sintomas de estresse entre as profissionais do sexo feminino. “Não só as mulheres que estão em casa estão sofrendo com isso, a gente tem muitas mulheres nessa linha de frente que estão experimentando sintomas como insônia, ansiedade, dificuldade de concentração, depressão”, afirma Christiane.

Com base na grande presença das mulheres nas linhas de frente, Marlise propõe a discussão sobre a presença delas também nos espaços de decisão sobre a pandemia. “É preciso atribuir poder às mulheres para que elas participem das decisões, porque são elas que estão no trabalho cotidiano de enfrentamento. Por que não as trazer para o debate?”, questiona a pesquisadora. “Se tivesse uma mulher dentro desses comitês chamando a atenção para essa perspectiva de gênero, não teríamos que estar aqui fazendo esse trabalho de visibilização da violência, de denúncia sobre a multiplicação da jornada”, defende.

Diariamente trabalhando com pacientes da Covid-19, a médica Hellen Bianchi, 33, teve que alterar completamente a rotina para proteger a filha de 5 anos. Ela e o marido, que também é médico, decidiram deixar a menina sob os cuidados dos avós, em outra cidade. Em casa, tudo mudou também. “Antes de entrar, eu tiro os sapatos, deixo a mochila do lado de fora, desinfeto objetos, como o carimbo, a caneta e os óculos, e corro pro banho. É uma neurose fora do comum”, relata. Episódios de insônia, ansiedade e vontade de chorar também têm se tornado mais frequentes na vida de Hellen. “Temos medo o tempo todo”, confessa.

Violência doméstica

Outro fator que preocupa especialistas durante o período de isolamento é o potencial de crescimento nos números de violência dentro de casa. “As jornadas das mulheres estão intensificadas, multiplicadas, e essas jornadas que se sobrepõem com certeza geram tensões que podem ser gatilhos para brigas domésticas”, pondera Marlise Matos.

A médica Christiane Ribeiro também aponta a própria previsão de aumento nos índices de violência doméstica como fatores que impactam a saúde mental da mulher. “É um fator muito preocupante, porque essas mulheres agora são obrigadas a permanecer em casa com os próprios agressores, o que favorece um ambiente de violência psicológica, além de física”, explica.

A Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da ONU Mulheres, chegou a publicar no início de abril um documento no qual lista uma série de impactos potencialmente sofridos durante a pandemia em função do gênero. Na publicação, a ONU cita um aumento global nos casos de violência causado pelo estresse econômico e social somado às medidas de restrição de circulação e contato. Tais fatores ainda são exacerbados por casas cheias demais, abuso de substâncias psicotrópicas, acesso limitado a serviços e falta de apoio.

Rede de apoio

Fundadora do grupo Padecendo no Paraíso, que reúne mães, principalmente mineiras, nas redes sociais, a arquiteta Bebel Soares conta que, desde que começou a pandemia, vê muitos relatos de sobrecarga no grupo. “Alguns desabafos que vejo são de mulheres que estão fazendo home office e tudo da casa, e o marido também em home office se tranca no quarto e sai para almoçar e jantar, como se nada estivesse acontecendo, mas elas continuam tendo que se virar para cuidar das crianças, lavar, passar, cozinhar. Então essa sobrecarga materna fica ainda maior sem a colaboração do marido”, relata.

Por sua característica de espaço de desabafo para mulheres, o grupo agora tenta servir como espaço de apoio psicológico para ajudar a manter a saúde mental das participantes. Segundo Bebel, as postagens do grupo têm tido um caráter de apoio e alívio, tentando levar mais leveza à rotina das mulheres e lembrando que elas não precisam ser perfeitas, que o momento é difícil para todos, além de recomendar e indicar acompanhamento psicológico para quem precisar, muitas vezes gratuito.

Para a psiquiatra Christiane, o pós-pandemia também é um contexto importante a ser considerado no âmbito da saúde mental da mulher. “Esses níveis aumentados de ansiedade, de depressão, não vão permanecer somente no período da quarentena. Um ponto a se pensar é a construção de uma rede de suporte, porque logo teremos o fim do isolamento, e as mulheres vão enfrentar essa fase com uma sobrecarga, uma estafa muito grande. Então, poderíamos pensar em locais onde elas possam fazer um acompanhamento psicoterápico, por exemplo”, sugere.

Uma solução de curto prazo defendida por Marlise é uma campanha de denúncia alertando sobre a violência contra a mulher na pandemia. No médio prazo, a conscientização sobre a divisão de tarefas. “Esse momento seria muito importante para chamar quem mora junto para dividir o trabalho. Se você não está vivendo sob a égide do punho do marido, se está em uma relação afetiva, é o momento de trazê-lo, de trazer as crianças, respeitando limites, para que venham a colaborar nas tarefas domésticas”, defende a pesquisadora.

O tempo.

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