“Tinha eu então pouco anos/ Quando eu te conheci/ Passei por mil desenganos/ Nunca mais te esqueci/ Agora eu choro a saudade/ Que no meu peito ficou/ Lembrando a felicidade/ Que de mim você roubou/ Acho que foi por maldade/ Que a saudade em mim ficou”. Os sentimentos na canção “Lembrança de Primavera” são tão complexos que poderiam ser escritos por alguém de muita idade. Mas, na verdade, foi feita por um menino, que ainda vivia seus 14 anos. Tornou-se a primeira composição de Gonzaguinha (1945 – 1991).
Desde o nascimento, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior carregava o nome de um dos maiores sanfoneiros do país. O “rei do baião”, Luiz Gonzaga, era seu pai. Entretanto, o menino cresceu com os padrinhos no morro de São Carlos, no Rio de Janeiro.
Ele foi morar com o cantor apenas no final da adolescência. Com o objetivo de estudar, passou a viver na Ilha do Governador, considerado um dos bairros mais antigos da cidade carioca.
Mas uma trajetória de divergências marcam a relação entre pai e filho. Além das diferenças nos pensamentos políticos, também enveredaram por caminhos distintos na música. Enquanto o primeiro atravessa o xote, o baião e o forró pé de serra, o segundo percorre o samba, a MPB e a bossa nova. Essa conexão artística chegaria somente anos após o início da carreira de Gonzaguinha.
O relacionamento entre os dois foi até retratado no filme “Gonzaga: de Pai para Filho” (2012), dirigido por Breno Silveira. O enredo mostra a história pessoal e profissional de Gonzagão, além de focar na distância entre ele e o filho. “A relação de Gonzaguinha e Gonzagão fala muito sobre o Brasil”, comenta a cantora Bruna Caram, que lançará um álbum com regravações de Gonzaguinha no final do ano.
Logo no começo da trajetória na música, tornou-se um dos fundadores do Movimento Artístico Universitário (MAU). Em meados da década de 1960, o maior objetivo da iniciativa era unir universitários para facilitar a divulgação de suas obras nos veículos de comunicação e em outros lugares. Participavam também outros nomes que viraram grandes artistas brasileiros, como Ivan Lins, César Costa Filho e Aldir Blanc (1946 – 2020).
Por meio do auxílio desse grupo, fez sua estreia no cenário da indústrial musical. No Festival Universitário da Música Popular, da TV Tupi, em 1968, concorreu com “Pobreza por Pobreza”. Naquele momento, entoou uma temática que seria recorrente em sua obra: “Nascido e criado aqui/ Sei o espinho aonde dá/ Pobreza por pobreza/ Sou pobre em qualquer lugar/ A fome é a mesma fome que vem me desesperar/ E a mão é sempre a mesma que vive a me explorar”.
As obras seguintes enveredam por narrativas semelhantes: “O Trem”, “Um abraço terno em você, viu mãe”, “Mundo Novo, Vida Nova”, “E Vamos À Luta”, “O Que é, o que é?”, “Redescobrir” e muitas outras trazem sua opinião sobre a realidade social. Mas conseguiu revelar, em meio a tantas críticas, uma visão esperançosa. Convocava as pessoas a persisitirem, era o próprio povo.
“Algo que acho muito bonito nele é que suas canções de luta são canções sem rancor. São de alegria de lutar por algo justo”, comenta a cantora Bruna Caram. Para ela, as composições do artista trazem empatia: “ele tinha muita empatia pela dor humana, colocava-se no lugar do outro, entendia os pontos de vista.”
Esses sentimentos de positividade até hoje são entoados. Suas letras se tornaram um hino de resistência, uma forma do brasileiro encontrar a felicidade a partir da música.
Exemplo disso é “O que é, o que é?” e suas frases que viraram um mantra: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz. Ah meu Deus! Eu sei, eu sei que a vida devia ser bem melhor e será. Mas isso não impede que eu repita: é bonita, é bonita e é bonita.”
“A obra dele está muito cheia de criança, mesmo quando falava de assuntos difíceis. Ele se chamava de ‘o moleque’. Suas composições de protesto não andam por um lado amargo, rancoroso”, explica Bruna.
O cantor Marcos Lessa, que gravou o álbum “Estradas: Um Tributo a Gonzaguinha” (2015), compartilha de uma opinião semelhante: “Ele era muito engajado politicamente. Isso, inclusive, rendia algumas discussões com o Gonzagão. Gonzaguinha era engajado com a esquerda, com os movimentos anti-repressivos e anti-ditadura.”
De acordo com o cantor cearense, o artista carioca tinha um amor pelo cidadão. “Ele tem um legado de muito amor ao próximo, dizia que a gente tem que ‘viver e não ter vergonha de ser feliz’. A gente tem que suar, mas de prazer, para viver a liberdade, a felicidade”, comenta.
Gonzaguinha ainda tinha outra face: a do amor. Com o álbum “Começaria Tudo Outra Vez”, de 1976, retornou ao tema de sua primeira composição. “Ele tem uma face do amor, com músicas muito singelas, que falam do ser humano, dos sentimentos do coração”, ressalta Marcos Lessa.
“Lindo lago do amor”, “Um homem também chora”, “Caminhos do coração” e “Simples saudades” trazem uma versão romântica. Entre sentimentos de saudade, paixão e declarações de amor ao ser humano, ele explora uma temática diferente daquela a qual ficou conhecido.
Em meados dos anos 1980, quando já tinha uma carreira consolidada, estreitou o relacionamento com o pai. Luiz Gonzaga havia gravado algumas das canções do filho no passado, mas foi nesta década que os dois viajaram com a turnê “A Vida do Viajante”.
Em 1986, Gonzaguinha funda o selo “Moleque”, com a qual lançou seus dois últimos discos. Hoje em dia, a produtora está sob responsabilidade de Daniel Gonzaga e da família. Foi por ela também que Marcos Lessa gravou o álbum em tributo ao artista.
Teve uma trajetória extensa, mas sua morte foi prematura: faleceu no dia 29 de abril de 1991, em decorrência de um acidente automobilístico. Três décadas depois, suas composições ainda dialogam com os brasileiros da atualidade.
Deixa como legado para a música e para a sociedade a esperança na humanidade: “Nunca se entregue/ Nasça sempre com as manhã/ Deixe a luz do sol brilhar no céu do seu olhar/ Fé na vida, fé no homem, fé no que virá/ Nós podemos tudo, nós podemos mais/ Vamos lá fazer o que será.”
Fonte: O POVO