Um político vai a um programa de TV e sai do armário em rede nacional: “Sou gay e amo outro homem”, diz o governador do Rio do Grande do Sul, Eduardo Leite. Na mesma noite de 2 de julho de 2021, instantes após a revelação, outro homem da política, o ex-deputado federal Jean Wyllys, descortina para o Twitter uma nova história, a da petista Fátima Bezerra. Única mulher na legislatura atual a governar um estado brasileiro e, de acordo com Jean, alguém que nunca tragou a atenção da mídia para a sua orientação sexual. “Que destaque foi dado por essa mesma imprensa ao fato de Fátima Bezerra, governadora do Rio Grande do Norte e aliada desde sempre da comunidade LGBTQIAP+, ser lésbica? Nenhum”, foi o tuíte que levou o nome de Fátima aos trend topics da rede social, convocando-a a se posicionar.
“Na minha vida pública ou privada, nunca existiram armários”, escreveu implacável, com a esperança de findar o barulho de uma vez por todas. Inclusive os próximos, que viriam – ela não tinha dúvida alguma – com os insistentes pedidos de entrevista (o nosso foi o único aceito), as mensagens torrenciais na internet e o ódio habitualmente destinado às mulheres, ainda mais quando assumidamente lésbicas. Porque sim, segundo ela, a violência tende a ser ainda mais pungente se a pessoa não demonstra medos. “Eu sei o que é a dor do preconceito, e sei como agem para minar a gente”, diz na conversa por videochamada que tivemos no fim de agosto. “Atacam em cima da roupa e da maquiagem, ridicularizando. E em cima do tom de fala e da minha orientação [sexual]. A violência é usada para tentar me desqualificar como gestora. Acontece que, não importa o que digam, nunca deixei de fazer aquilo em que acredito e que me dá felicidade. Não sou de me omitir, me mantenho na linha de frente defendendo as causas que dizem respeito à liberdade. Isso não fez nem fará de mim uma governadora menor. Me faz, na verdade, mais humana do que aqueles que me atacam.”
Fátima não se alonga quando o assunto é sua vida íntima. O silêncio a toma assim que a reportagem tenta ir mais fundo – queremos saber se ela tem, atualmente, uma companheira, e se aceitaria contar sobre o relacionamento, como fez Eduardo Leite ao jornalista Pedro Bial. Guia, uma das assessoras, adverte que “podemos falar do governo, do combate à pandemia, dos planos para educação e do enfrentamento ferrenho que a gestão de Fátima tem feito sobre a violência contra as mulheres”, mas que a política não abrirá sobre “namoradas e romances”. Fátima, então, interrompe Guia: “É que preferia contar do que estou fazendo como governadora. Não me leve a mal, não estou fugindo da pergunta. Não posso falar só por mim. E, veja, não estou falando da minha companheira porque nem tenho companheira”. Assunto encerrado.
Filha de uma parteira e de um agricultor que mais tarde se tornou comerciante de colchões, Fátima nasceu na pequena Nova Palmeira, na Paraíba, em maio de 1955. Migrou ainda adolescente para a capital do Rio do Grande do Norte para estudar e fugir da seca de 1970. Foi a primeira dos cinco irmãos a entrar na faculdade. Cursou pedagogia porque queria ser professora – e foi, por anos; aliás, gosta de dizer que foi. Tem convicção de que não teria enveredado para a política se não fosse a educação. “Uma me colocou na outra, elas se confundem muito. Quando você mergulha genuinamente nos preceitos da educação, é inevitável passar pela política. A boa política prioriza o investimento em educação”, diz, convicta.
Discípula de Paulo Freire, Fátima acredita que a educação é um ato de amor, e que escolas e professores bem cuidados podem ajudar na formação de sujeitos transformadores da realidade. Bem por isso, está implementando o Nova Escola Potiguar, programa de fôlego que investirá, até o fim de 2022, R$ 400 milhões na educação básica do Rio Grande do Norte. “Estamos trabalhando num novo conceito, seja na arquitetura sustentável das escolas, com energia solar fotovoltaica e reúso de água, seja na proposta pedagógica do ensino integral, com protagonismo dos alunos, formação de professores e mediação tecnológica no processo ensino-aprendizagem.”
No dia desta entrevista, a governadora participou de uma live com integrantes da Assembleia Legislativa e do Ministério Público. O tema foi Agosto Lilás. “Chamamos assim porque o mês representa conscientização e combate à violência de gênero”, explica. Em 2020, o Rio Grande do Norte esteve entre os três estados que conseguiram diminuir o número de feminicídio. E isso em um tempo de isolamento social, quando mulheres se viram obrigadas a conviver sem descanso com seus agressores. “Não foi por acaso que baixamos os feminicídios, enquanto a grande maioria dos estados fez crescer. Criamos aqui uma secretaria de mulheres, e com ela produzimos um monte de estudos de combate a esse crime. Agora também temos uma delegacia de atendimento às mulheres que funciona 24 horas, e anunciei no Agosto Lilás, dentro do plano de reorganização da Polícia Civil, mais quatro. Temos ainda a delegacia virtual, a Patrulha Maria da Penha [que faz visitas periódicas a mulheres em situação de violência doméstica a fim de verificar o cumprimento das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha] e a Casa Abrigo. O Rio Grande do Norte não tinha uma dessas para acolher as vítimas [de violência doméstica] e seus filhos. Essa Casa tem equipe multidisciplinar, porque a vida das mulheres importa. Isso não é discurso não; temos que dizer que a vida delas importa com ações concretas”, detalha Fátima.
Na conversa, ela, que, além de governadora, já foi professora, dirigente sindical, deputada estadual, deputada federal e senadora, relembra sua trajetória – política, mas não só. Fala de sua amizade próxima com o ex- presidente Lula, que gostaria de ver Luiza Trajano compondo chapa com ele no pleito de 2022; dos desafios que teve no enfrentamento à pandemia; dos machismos e da homofobia que atravessaram – e ainda atravessam – sua história; e de suas apostas em políticas públicas voltadas a diversidade, educação e gênero.
Matéria completa em: Marie Claire